REVISTA - BH 125 ANOS

Direitos dos animais saem da margem e passam a figurar no centro dos debates

Animais possuem consciência e interesses próprios que importam juridicamente, independentemente dos seus defensores

terça-feira, 24 Janeiro, 2023 - 21:15

Foto: Divulgação / CMBH

Pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) apontou que, em 2018, Belo Horizonte tinha um cão para cada oito habitantes e um gato para cada 25 habitantes; e a estimativa é de que pelo menos 30 mil desses animais vivam nas ruas da cidade. A proteção, o cuidado e o direito à dignidade, que já eram reconhecidos pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) desde 1978, e pela Constituição Brasileira de 1988, tornou-se nos últimos anos uma emergência urbana e o estabelecimento de novas leis que garantam os direitos e a dignidade dos animais tem mudado o jeito das cidades, dos cidadãos, do comércio e do poder público lidarem com os bichos de estimação.

Sujeitos de direito

Em BH, a primeira norma a tratar o assunto, data da década de 1940, quando o município editou a Lei 9/1948, que trata da matrícula e vacinação de cães. Trechos da norma mostram a preocupação do poder público com a população de cães ao proibir a ‘permanência de cães nas vias públicas, salvo se conduzidos pelos proprietários e presos por corrente ou devidamente açaimados’ (amordaçados). Cinquenta e cinco anos depois, a referida norma foi revogada ao entrar em vigor a Lei 8.565/2003, que dispõe sobre o controle da população de cães e gatos. Originária de projeto do então vereador Leonardo Mattos, o texto caracteriza o animal que vive na cidade, levanta aspectos como registro, vacinação e apreensão, e, principalmente, inova ao tratar da educação para a posse responsável do animal e, de forma mais superficial, de questões como maus-tratos, aprisionamento e ausência de alimentação mínima.

Hoje mais consolidadas, estas premissas, segundo Gabriela Maia, fundadora da ONG Direito Animal Brasil (Dabra), são base para a compreensão do direito animal e estão amparadas em legislações internacionais que reconhecem os animais como sujeitos de direito. Para a advogada, tratar desse assunto é importante, em especial, para desmistificar expressões como ‘defensores dos animais’. “Não se trata dos defensores da causa animal, mas dos animais em si. A Constituição Federal prevê a regra de vedação da crueldade contra os animais, o que consagra os animais como detentores de dignidade própria. Além disso, em Minas Gerais, temos a Lei 22.231/2016, que os reconhece como sujeitos de direito. A Declaração de Cambridge, de 2012, reconhece que os animais possuem consciência, interesses próprios e esses interesses importam juridicamente, devendo ser considerados, independentemente dos seus defensores”, explica.

A Dabra foi fundada em 2020 e, segundo Gabriela Maia, a atuação é focada na implementação de políticas públicas, fazendo o advocacy, ou seja, o diálogo permanente com os entes públicos, os agentes políticos e as autoridades para criar leis e direcionar a atuação pública para implementar a defesa dos animais não-humanos e o aumento do seu bem-estar. “Também nos preocupamos com a educação animalitária, tentando deixar a linguagem do direito animal o mais simples e próxima possível das pessoas, para que elas entendam quais são os seus deveres para com os animais e quais são os meios de defendê-los”, esclarece, lembrando ainda que, quando necessário, são promovidas ações judiciais na defesa de animais vítimas de maus-tratos, resultando em proibições de rodeios e apreensão de animais que necessitavam de cuidados médico-veterinários.

BH sem carroça

Nos anos posteriores, o legislativo municipal continuou contando com parlamentares que trouxerem a pauta dos direitos dos animais para o centro das discussões e, no fim dos anos 2000 e, mais tarde, em 2017, o debate foi em torno dos veículos de tração animal. De autoria do então vereador Anselmo Domingos, a Lei 10.119/2011 determina que o veículo de tração animal deve ser de material compatível com as condições e com o porte físico do animal e observar critérios de segurança, saúde e especificações técnicas, dentre elas que o animal seja identificado, ferrado, limpo, alimentado, dessedentado (saciado de sua sede) e em condições de segurança para o desempenho do trabalho.

Já na década seguinte, o tema ganhou novos contornos e a proposta foi pela extinção da tração animal na capital. Apresentado pelo então vereador Osvaldo Lopes, o PL 142/2017 propôs a instituição do Programa de Substituição Gradativa de Veículos de Tração Animal, intitulado “Carreto do Bem”. A proposta, que à época dividiu opiniões ficou cinco anos tramitando na Câmara Municipal, e só no ano passado o texto encontrou consenso, tornando-se a Lei 11.285/2021, que determinou o fim das carroças puxadas por animais no prazo de dez anos, em 2031.

A divergência, porém, é parte do processo de escuta da cidade e a conciliação de interesses pode, segundo Gabriela Maia, ser solucionada por meio da atuação do poder público. “Os trabalhadores que utilizam carroças não podem ficar desamparados com o fim dos veículos tracionados por animais e a Secretaria de Assistência Social possui plena capacidade de proporcionar a eles alternativas para que continuem laborando sem desconsiderarem os interesses dos animais em não serem submetidos às degradantes condições das carroças”, avalia a advogada.

O prazo para o fim das carroças em BH pode ser reduzido em cinco anos, como prevê o PL 411, apresentado em 2022 pelo vereador Wanderley Porto (Patri) e outros sete parlamentares: Ciro Pereira (PTB), Cleiton Xavier (PMN), Gabriel (sem partido), Irlan Melo (Patri), Jorge Santos (Republicanos), Léo (União) e Reinaldo Gomes Preto Sacolão (MDB). Se aprovado, o prazo limite para o Município acabar com as carroças será 2026, em vez de 2031.

Cidade protetora dos animais

Miltinho CGE já fazia resgate de cães no Rio Arrudas, antes de se tornar parlamentar. Já ajudou a resgatar, cuidar e garantir adoção responsável para centenas de animas. Segundo o parlamentar, a luta pelos animais sempre foi uma vocação e a atuação como vereador potencializou este trabalho. “A gente nasce protetor. Sempre tive um amor muito grande por eles e ajudava da forma que conseguia. Mas, ao longo do tempo, vi que precisava dar aos animais mais voz e o intuito é ajudá-los também com políticas públicas e fiscalizando a atuação do poder público”, ressalta.

Para Miltinho, BH tem tudo para se tornar uma cidade que protege verdadeiramente o direito dos animais, já que a aprovação de leis recentes, como a que proíbe a soltura de fogos de artifício com estampido, tem encontrado a simpatia da população. Originada de projeto assinado por ele, Irlan Melo e Wesley, a Lei 11.400/2022 suspende o costumeiro “foguetório” ruidoso, que caracteriza festejos e comemorações na cidade, uma vez que o ruído é altamente prejudicial à saúde não só dos animais, mas também à de idosos, bebês e pessoas com autismo.

A capital mineira tem acompanhado o crescimento do número de PETs na cidade e quatro das nove regionais de BH já contam com centros de esterilização de cães e gatos de forma gratuita para a população. Além disso, no ano passado, foi inaugurado o primeiro hospital público veterinário na cidade. Destinado ao atendimento de animais de tutores de baixa renda, a unidade já recebeu ao menos R$ 500 mil em emendas de vereadores, por meio do orçamento impositivo.“Estamos avançando aos poucos, um passo de cada vez. Mas o que realmente precisamos é que a população enxergue os animais como parte da sociedade, o que de fato eles são. Eles não são objetos e devem ser tratados com dignidade e amor”, avalia o vereador do PDT, que destinou em 2022 R$ 630 mil em emendas impositivas para aquisição de equipamentos de raio-X e de ultrassonografia e realização de serviços de cirurgia veterinária para atendimento a animais cujos tutores são de baixa renda.

Ver BH uma cidade protetora dos animais também é um dos focos de atuação de Wanderley Porto. Além da proposta de redução do prazo para extinção dos veículos de tração animal, o parlamentar é autor e/ou assina conjuntamente propostas que já se tornaram leis, como a que proíbe eventos com maus-tratos aos animais, como rodeios, touradas, vaquejadas e rinhas (Lei 11.320/2021); e a que proíbe práticas de adestramento agressivo e invasivo contra animais domésticos (Lei 14.441/2022).

Tramitando em 2º turno e bem perto de se tornarem leis estão medidas como a obrigatoriedade de prestar socorro aos animais atropelados (PL 210/2021) e a proibição de corridas competitivas, atividades extenuantes e ações similares que promovam a exploração e os maus-tratos a cães, independentemente da raça e da linhagem canina (PL 50/2021). A criação de espaços de lazer para animais domésticos (PL 238/2021); a implantação da farmácia veterinária solidária (PL 345/2022); e a redução progressiva da visitação pública aos zoológicos, aquários e congêneres até sua abolição total (PL 391/2022) também são iniciativas parlamentares que podem ser votadas. A norma mais recente em favor do bem estar animal é a Lei 11.449, publicada em 19 de janeiro de 2023, que cria o Selo Pet Friendly para estabelecimentos preparados para receber tutores com seus bichos de estimação “Garantir a efetividade desses direitos não é uma tarefa fácil, pois depende de um esforço conjunto da sociedade e poder público. Podemos comemorar as conquistas, mas ainda há muito a fazer. Não dá mais para conviver com tantos maus-tratos aos animais, eles merecem o nosso respeito e cuidado. Essa luta é nossa!”, conclui Porto.

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