VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA

Entidades sugerem ações para proteger as gestantes e garantir acesso à informação

Pré-natal adequado, redução do número de cesarianas e profissionalização das doulas foram defendidos durante o debate

terça-feira, 26 Novembro, 2024 - 20:45

Foto: Dara Ribeiro/CMBH

Representantes de movimentos em prol da saúde da mulher e do parto humanizado, bem como da Secretaria Municipal de Saúde se reuniram nesta terça-feira (26/11) na Comissão de Mulheres para discutir a regulamentação da Lei 11.609/2023, que dispõe sobre a promoção da dignidade da gestante, da parturiente e da puérpera e o enfrentamento da violência obstétrica em Belo Horizonte. A norma sancionada em novembro de 2023 foi proposta pela então vereadora Bella Gonçalves e Iza Lourença (Psol), que requereu a audiência junto com Cida Falabella (Psol). As participantes destacaram a invisibilidade da violência obstétrica, desconhecida até mesmo por mulheres que a sofreram, e a necessidade de uma reforma que traga mudanças significativas nas maternidades, na formação profissional e nas técnicas utilizadas, reduzindo o número de cesarianas e promovendo a profissionalização das doulas, entre outras medidas. Iza Lourença se comprometeu a procurar a Secretaria Municipal de Saúde para tratar dos aspectos da lei e demandas sugeridas no encontro, como a oferta de rodas de conversa sobre educação perinatal em Unidades Básicas de Saúde (UBS), que pode ser proposta em emenda parlamentar. Cida Falabella reforçou que a legislação é ousada, corajosa, e fala, sobretudo, de uma mudança de cultura em relação à saúde dessas mulheres.

A coordenadora do projeto Sentidos do Nascer e ex-vereadora Sônia Lansky defendeu a necessidade urgente de uma “reforma obstétrica”. A pediatra, que também integra a Rede pela Humanização do Parto e Nascimento (ReHuNa), reiterou que é preciso “um grande pacto de convergência da coletividade” para que se consiga tratar a violência obstétrica e enumerou seis pontos-chave para se chegar “a um novo modelo necessário”, transformando tanto o padrão de atenção quanto de ambiência do parto. São eles: eliminar o racismo obstétrico; adequar as maternidades de acordo com as determinações da Anvisa; promover serviço substituto nos hospitais gerais, com lugar para parto digno; incluir parto domiciliar no SUS; reduzir as intervenções que muitas vezes são desnecessárias, como cortes e induções que não funcionam; e oferecer um cuidado mais qualificado, “de um para um”, com uma enfermeira obstetra por parturiente. 

Também participante do ReHuNa e do projeto Sentidos do Nascer, Rosa Lima Duarte acentuou que “não se pode confundir violência obstétrica com violência do obstetra”, porque os problemas ocorrem durante todo o período gravídico e puerperal, e, portanto, envolvem todos os profissionais que atuam nessas fases. Ela enfatizou que os especialistas que tratam dessas mulheres devem estar atualizados sobre o que está comprovado cientificamente e que a lei deve resguardar todo o caminho percorrido pela mulher durante a gestação, o parto e o puerpério. 

Pré-natal e parto humanizado

Outra preocupação enfatizada no encontro foi a questão da liberação da cesariana a pedido, sobre a qual, segundo Rosa, existem muitos mal entendidos. Sônia Lansky disse que mulheres optam pela cesariana porque têm medo de uma experiência de parto ruim, porque não lhes são oferecidas condições para um bom parto. Em concordância, a representante do  Movimento Leonina Leonor é Nossa, Mônica Aguiar, declarou que a mulher precisa de um pré-natal adequado e uma boa assistência na UBS para ficar tranquila, sem medo da dor. A ativista afirmou que não existem evidências científicas de que o parto normal faça mal à mãe e ao bebê, e que “uma sociedade que não respeita a ancestralidade, o conhecimento ancestral, se perde no abstrato e induz as pessoas à morte”.

Leonora Tavares de Paula, do  Movimento Bem Nascer, também acredita que a opção pelo parto cirúrgico decorre de um pré-natal ruim e da falta de informações. Em sua opinião, é preciso estimular o plano de parto com a participação das famílias, profissionais e demais pessoas no entorno da gestante. Ela destacou, ainda, a necessidade de levar esse público interessado a espaços que ofereçam informações sobre o parto e debatam sobre os assuntos relacionados. 

A importância de pensar as violências de gênero não somente no ambiente doméstico foi ressaltada por Sofia Amaral, da Rede Feminista de Saúde. A convidada explicou que a violência obstétrica fere direitos sexuais e reprodutivos e tem a ver com pautas que a sociedade tem dificuldade de tratar no nível politico, como a legalização do aborto. Segundo ela, as pessoas têm o direito de decidir de forma responsável se querem ter filhos, quantos e quando, de expressar a sexualidade sem preconceitos e sem violência e de acessar métodos de prevenção à gravidez e infecções sexualmente transmissíveis. Todos esses aspectos fazem parte desse escopo e são importantes para garantir gestações livres e planejadas. Sofia reforçou a defesa do parto humanizado e da redução do número de cesáreas, que no Brasil representam cerca de 60% dos partos, enquanto a recomendação da OMS é de 15%.

Canal de denúncias 

Durante sua fala, Sônia Lansky divulgou campanha da ReHuNa para inclusão de um item específico sobre violência obstétrica na ficha do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan). No mesmo sentido, Iza Lourença defendeu a criação de um canal específico para o encaminhamento de denúncias de violência obstétrica e questionou a representante da Secretaria Municipal de Saúde, Amanda Perez. Coordenadora da Saúde da Mulher da pasta, ela concordou que o canal é importante, mas antes é preciso evoluir a percepção das próprias mulheres em relação a esse tipo de violência. A gestora se dispôs a iniciar a discussão e a pensar numa estratégia possível. Iza Lourença sugeriu a elaboração de um formulário, com acompanhamento dos Agentes Comunitários de Saúde (ACS), e a publicização dos dados do órgão sobre o assunto, que pode ser útil para aprofundar o debate. Em resposta, Amanda considerou uma boa ideia a capacitação de ACSs para o serviço.

Invisibilidade 

Um dos pontos mais abordados no debate foi o fato da violência obstétrica ser ainda muito invisibilizada, tanto por falta de conhecimento quanto pela escassez de dados concretos. A professora da UFMG Raquel Zanatta, integrante do Sentidos do Nascer, apresentou resultados de uma pesquisa intitulada “Percepção das mulheres sobre a assistência obstétrica e suas consequências para a saúde da mulher e da criança em Belo Horizonte”, realizada em 2021, na qual 85% das respondentes não sabiam que haviam sofrido violência durante o pré-natal e 82% durante o parto. Esse desconhecimento foi constatado ao questionar a percepção sobre práticas como ter os braços e pernas amarrados no parto, que não foi considerado um ato violento por 28% delas; levar pontos sem anestesia; passar por algum procedimento sem seu consentimento; sentir dor durante a cirurgia, entre outras. A pesquisadora reforçou, com a exposição dos dados, a importância de uma mudança de mentalidade da sociedade como um todo e a mobilização social voltada ao incremento das ações educativas sobre o tema.

Clara Ribeiro Bretas, do coletivo Mães Órfãs e da ONG Ishtar BH, disse que a violência obstétrica se escancara no parto, mas começa muito antes, desde a primeira consulta, principalmente com mulheres em situação de extrema vulnerabilidade. Ela conta que grávidas em situação de rua, ou com vício em drogas já chegam aos equipamentos com a ameaça de perder os filhos. A ativista denunciou que as instituições de saúde estão muito pouco preparadas para entender as especificidades e as questões que atravessam a vida dessas mulheres, muitas delas abandonadas pelo Estado desde a infância, sem nenhuma política de reparação, e hoje são punidas. Segundo ela, o único interesse é proteger a criança para alimentar a demanda de adoções, e a mulher é “devolvida” para onde estava. Clara diz que não existem dados sobre quem são essas mulheres que perdem os filhos, e “sem dados não tem como criar políticas sobre isso”.

Profissionalização da doulas

Thais Alves, da Associação Doula Solidária e fundadora do coletivo Uai Doulas, falou sobre o desejo de levar a educação perinatal gratuita aos espaços de saúde da cidade. Ela esclareceu sobre seu trabalho de pós-graduação, que trata da oferta de rodas de conversa sobre o tema nas UBSs, e a vontade de que a medida integre o plano de pré-natal do SUS. A coordenadora da Saúde da Mulher disse que vai entrar em contato para discutir a ideia, e Iza Lourença sugeriu implementar a ação por meio de uma emenda à Lei 11.609. Sobre a capacitação de doulas, Thaís afirmou que os cursos deveriam ser ministrados por praticantes da atividade, o que, em seu conhecimento, não acontece. Amanda Perez esclareceu que há sim a participação de doulas no curso de formação, o que de fato é algo mais recente, mas que a capacitação vem melhorando a cada ano. 

Cida Falabella e Iza Lourença lembraram que destinaram recurso de emenda parlamentar para a formação de doulas. Cida reiterou que essa é uma causa com a qual elas estão comprometidas e que seguirão lutando pela profissionalização da atividade.

Maternidade Leonina Leonor 

A cena de banheiras para parto sendo quebradas no local onde foi construída a Maternidade Leonina Leonor Ribeiro, em Venda Nova, foi lamentada pelas participantes. Apesar de estar pronta desde 2009, a maternidade criada para se tornar referência em parto humanizado nunca entrou em funcionamento, mesmo com a pressão de ONGs e da sociedade civil. Em 2021, houve denúncia sobre a retirada das banheiras do local e, em 2022, a Prefeitura decidiu transformar o espaço em um Centro de Atenção à Saúde da Mulher.

Mônica Aguiar, do Movimento Leonina Leonor é Nossa, apontou que a região onde a maternidade seria instalada sofre com a falta desses equipamentos e se tornou comum mulheres terem seus filhos durante o transporte para hospitais que ficam muito distantes. Ela denunciou que a reconstrução da unidade, apesar de ter sido aprovada, não foi incluída no Plano de Saúde da capital e na prática foi substituída pela implantação do Centro. Segundo Mônica, não foi dada nenhuma satisfação sobre o que foi feito com os materiais e equipamentos retirados da maternidade. 

Dr. Bruno Pedralva (PT), que acompanhou a reunião, disse que a Prefeitura precisa prestar contas sobre o destino desses itens e sugeriu que isso seja cobrado. O vereador aproveitou o contexto para falar sobre a obra de um novo hospital que está sendo construído no Bairro Gameleira, que contará com uma maternidade, e alertou que é necessário questionar o que será feito na unidade e quais práticas serão implementadas para não haver retrocessos.

Assista aqui à íntegra da reunião.

Superintendência de Comunicação Institucional