FARMÁCIA VIVA E PICS

Conselheiros de saúde e especialistas defendem inclusão de saberes tradicionais

Participantes do debate reivindicam adoção de práticas e conhecimentos de povos originários e envolvimento da comunidade 

quinta-feira, 20 Abril, 2023 - 21:30

Foto: Barbara Crepaldi / CMBH

Raizeiras e benzedeiras vestidas de branco, cantando e dançando ao som de atabaque, jogando ervas e aspergindo essências no Plenário Camil Caram. Assim foi aberta a audiência pública da Comissão de Saúde e Saneamento que debateu, na quinta (20/4), o andamento das políticas nacionais Farmácia Viva e Práticas Integrativas e Complementares de Saúde (Pics) no SUS-BH. Requerido por Bruno Pedralva (PT), o encontro reuniu gestores municipais, conselheiros de saúde, especialistas e cultivadores de ervas e representantes de povos e culturas tradicionais detentores de saberes e práticas ancestrais, especialmente mulheres negras. Os participantes reivindicaram a ampliação dessas políticas para além dos critérios e lógicas “oficiais”, de forma a incorporar esses espaços e conhecimentos. Para isso, foi sugerida a criação de um comitê envolvendo esses atores. Pedralva solicitou a busca urgente de um local para abrigar o Centro de Esterilização (Cest) Norte, que está ocupando o prédio da Farmácia Viva, impedindo a imediata abertura do equipamento. Encerrado o tempo regimental da reunião, o vereador continuou a conversa com os convidados, e outros encaminhamentos poderão ser apresentados posteriormente.

Bruno Pedralva celebrou a diversidade de práticas culturais, religiosas e medicinais tradicionais representadas na audiência e a força do movimento popular. “Saúde não é só médico e remédio”, afirmou. “Ao longo da luta pelo direito à saúde, conseguimos cravar na Constituição Federal que a saúde é fruto das condições sociais e econômicas, de renda, de moradia, do respeito à diversidade, da cultura da não violência”. O parlamentar ressaltou a conquista representada pelos programas nacionais Farmácia Viva e de Práticas Integrativas Complementares de Saúde (Pics) no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), lançados em 2010 e 2011 pelo governo federal, e os esforços de gestores e profissionais da saúde de Belo Horizonte, mas ponderou que é preciso repensar, reorganizar e ampliar essas políticas para além da perspectiva adotada até o momento.

Ana Maria Soares, membra do Conselho Municipal de Cultura, raizeira e benzedeira, defendeu o fortalecimento das ações dos atores populares e tradicionais nos espaços institucionais, “trazendo nossas ervas, nossas plantas e nossa fé para dentro do SUS”. Segundo ela, não apenas a Farmácia Viva, mas também as práticas integrativas devem possibilitar o acesso de toda a população às práticas e saberes tradicionais que fazem parte da saúde cotidiana de gerações de brasileiros - raizeiras, benzedeiras, pajés. Pai Ricardo, da Reunião Umbandista Mineira, reiterou que, nas periferias, as plantas ainda são o primeiro aporte para evitar doenças, promover saúde e trazer harmonização e remédio aos que não têm acesso às “coisas do branco”. “O modelo colonial predatório nos fez perder muito dessa potência”, lamentou. Para ele, é preciso reconhecer e valorizar os que cultivam, manuseiam as ervas e raízes. “Os povos de terreiro, rezadeiras, raizeiros podem fazer o plantio e colheita desses remédios”, defendeu.

Diretrizes e situação atual

Ana Emília Oliveira, Isabel Soares e Anelise Prates, da Secretaria Municipal de Saúde, explicaram que a Farmácia Viva prevê o cultivo, coleta, processamento, armazenamento, manipulação e dispensação de tinturas, xaropes, pomadas e outras preparações magistrais e oficinais. Neste primeiro momento, foram selecionadas sete plantas medicinais de uso amplo e comprovado e 90 substâncias homeopáticas a serem distribuídas na rede de saúde. A sede do equipamento está pronta e inclui área para cultivo. Além de promover o acesso e uso seguro das plantas medicinais, o programa visa a difundir e valorizar essa cultura, formar e educar profissionais de saúde, estimular a pesquisa e o desenvolvimento e incentivar a agricultura familiar e periurbana. Há 30 anos, antes mesmo do lançamento da política nacional, segundo as gestoras, o Município vem incorporando práticas como acupuntura, homeopatia e antroposofia (Prhoama), Liam Gong, Tai chi chuan e meditação e TCI, que abordam a saúde e o adoecimento de forma mais ampla e transversal.

A pasta exibiu imagens do local onde funcionará a Farmácia Viva, ao lado da Unidade de Pronto Atendimento (Upa) Norte, na Avenida Risoleta Neves, com prédio já pronto e terreno adjacente para cultivo das plantas. O imóvel, porém, que estava desativado e sofrendo vandalismo e depredações, foi cedido para abrigar temporariamente o Centro de Esterilização (Cest) Norte; segundo a funcionária do equipamento, Janete Coimbra, o espaço só deverá ser desocupado no final de 2024. Diante disso, Bruno Pedralva anunciou que, para que não seja preciso esperar mais dois anos, irá encaminhar junto à Prefeitura a procura imediata e urgente de um local adequado para abrigar o Cest, possibilitando a abertura e o início imediato das atividades da Farmácia Viva, aguardada há mais de dez anos pela cidade.

Cultura brasileira e popular

Maysa Mathias, doutora em Plantas Medicinais e Pics, especialista em Agricultura Tradicional e Sustentabilidade e ligada ao Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), contestou o foco da política pública nas disposições da legislação, que, segundo ela, acaba por engessar algo que vai muito além. “Não dá pra falar em planta medicinal sem falar em memória, história, povo preto, raizeiros, mateiros, benzedeiras”, alertou. A ativista ressaltou que, apenas ali, naquela hora, estavam presentes mais de dez terreiros, “a farmácia preta viva”, que não precisa esperar até 2024. Essa política, em seu entendimento, é a materialização de saberes acumulados ao longo dos tempos e não precisa se dar apenas na forma de preparações magistrais, mas também no uso de plantas secas e frescas oriundas da cultura popular e da agricultura familiar.

Reafirmando o direito de aplicação e valorização desses conhecimentos, ela questionou em que eixo do programa Belo Horizonte se encontra. “Não é apenas a estrutura física; é preciso um diagnóstico do perfil epidemiológico, dos costumes, das plantas mais conhecidas e consumidas na cidade. A Farmácia Viva não é lugar exclusivo do poder público, é uma materialização dos conhecimentos e movimentos que já circulam e fazem parte da nossa cultura”, disse Maysa. Isso vale também para as Pics: “Reiki? Tai chi? Por que não a benzeção, o maculelê, a capoeira?”, questionou. Para ela, a adoção de práticas alheias à cultura brasileira e popular demonstra que o processo histórico e a estruturação dessas políticas estão amparados no racismo estrutural. Essa perspectiva se aplica ainda à formação de prescritores, aos critérios de escolha das plantas. “É preciso expandir o entendimento, romper com a lógica eurocêntrica, articular com a agricultura urbana e os territórios tradicionais”, defendeu; “para esses avanços, não é preciso esperar 2024”.  Para construir e efetivar as estratégias e ações de forma horizontal e inclusiva, ela sugeriu a criação de um comitê com a participação desses atores.

Relatos e sugestões

Membros de conselhos distritais e comissões locais de saúde, que acompanham de perto as dificuldades e os anseios dos usuários do SUS, cultivadores de plantas em hortas e quintais, membros de terreiros de umbanda e candomblé e indígenas com tradição de cultivo e utilização de raízes, garrafadas, essências, banhos, escalda-pés e rezas, que unem natureza, técnicas milenares, sagrado e fé, reproduzindo conhecimentos ancestrais, relataram experiências e testemunhos de cura de doenças e dores físicas e emocionais, próprias e de terceiros, elogiaram a ideia da criação do comitê e manifestaram o interesse e disposição de participar.

Participantes também se queixaram do adiamento recorrente das ações do poder público que dificultam o avanço dessas políticas, e foi citada como exemplo a falta de empenho da Prefeitura em conseguir outro local para abrigar o Centro de Esterilização, impedindo a abertura da Farmácia Viva. Uma cultivadora apontou que o terreno que será utilizado para o plantio está todo cimentado. “É preciso preparar e tratar a terra, semear, cuidar, esperar crescer – esses processos demandam tempo, e não vão acontecer no final de 2024”, alertou. Outras afirmaram que quintais, terreiros e hortas de cultivadores experientes são tão válidos quanto espaços oficiais da PBH e sugeriram que a Prefeitura mapeie e cadastre os terrenos que já são utilizados para este fim e podem funcionar como centros de apoio. Uma integrante do MST disponibilizou as terras do movimento para o plantio.

Neste momento, a reunião, que já havia sido prorrogada, teve de ser oficialmente encerrada em razão do prazo regimental; assessoria técnica, gravação e transmissão tiveram que ser interrompidas. O requerente, no entanto, propôs aos convidados o prosseguimento da conversa para sugestões e encaminhamentos, que serão ser formalizados posteriormente junto à Comissão de Saúde e Saneamento.

Superintendência de Comunicação Institucional

9ª Reunião Ordinária da Comissão de Saúde e Saneamento - Audiência pública para debater "Abertura da Farmácia Viva e as Práticas Integrativas e Complementares PIC's no SUS-BH".