Falta de investimentos em habitação requer soluções inovadoras
Antes referência na política habitacional, BH amarga falta de investimento. Uso da função social da terra e autogestão são sugeridos
Foto: Bernardo Dias/CMBH
O déficit habitacional e os instrumentos para resolver a questão foram debatidos nesta quarta-feira (30/6) em audiência pública da Comissão de Administração Pública. As vereadoras Bella Gonçalves (Psol) e Macaé Evaristo (PT), autoras do requerimento, destacaram, além do déficit de moradia da capital, o passivo de unidades habitacionais do Orçamento Participativo da Habitação e a necessidade de remoção de famílias que tiveram suas residências atingidas pela chuva. Além do Moradia Segura, o Compra Compartilhada foi destaque na fala dos convidados, que questionaram, entre outras coisas, se o programa vai atender a população de baixa renda. A falta de recursos do governo federal, a utilização de terrenos públicos para construção de moradias e a destinação dos imóveis sem função social também pautaram o debate.
Bella defendeu a urgência da moradia em um contexto de pandemia e de precarização das famílias e destacou o cenário de desmonte das políticas federal e estadual: “A moradia é uma dimensão estruturante da vida de todos os sujeitos e se constitui como porta de entrada de todos os outros direitos como saúde, educação, assistência”.
Thaian, militante da moradia popular, apresentou um panorama da situação habitacional da capital e enfatizou a redução no número de moradias construídas pelo Município que já chegou a investir 6% do orçamento em habitação e agora só investe 1,2%. Ele chamou atenção para o fato de que, desde 2009, as ocupações urbanas construíram 15.781 unidades habitacionais, enquanto a PBH produziu apenas 7.982 moradias, a maioria para fins de assentamento e não para suprir o déficit. Ele também destacou que em 2020 e 2021 muitas famílias perderam a moradia em função da chuva e questionou a PBH sobre o que o Município pretende fazer em relação a essas perdas; como pretende atender à população em situação de rua e, ainda, se a proposta de implantação do programa de Compra Compartilhada vai atender famílias de baixa renda ou será apenas mais um programa econômico que vai beneficiar os construtores. O militante lembrou ainda que já existe uma legislação para converter imóveis vazios em moradias para pessoas de baixa renda e que essa legislação não é cumprida.
Compra Compartilhada
O arquiteto urbanista e professor da UFMG Hamilton Ferreira explicou que o programa Compra Compartilhada vai atender famílias que têm condições de arcar com prestações, famílias que têm mais estabilidade, mas precisam de um subsídio. Segundo ele, o contexto desfavorável e complexo, além da crescente instabilidade econômica, aumenta o custo de produção habitacional. “Os recursos são limitados e as condições de financiamento são impeditivas para quem ganha até um salário mínimo. É preciso ser flexível e levar em conta o estoque de moradias que já existe na cidade”. Ele reconheceu que um programa de provisão habitacional é muito mais amplo que a produção de moradia e diz que é possível incluir imóveis usados neste programa. “É preciso criar alternativas para todos, pois o perfil das famílias é muito distinto. O financiamento de imóveis novos e distantes pode ser menos interessante que o financiamento de imóveis usados em uma localidade mais próxima de onde a família mora", argumentou.
Para Claudia Amaral, promotora de Justiça de Defesa dos Direitos Humanos, o Compra Compartilhada é muito bem-vindo, mas não vai atender quem mais precisa de moradia. Ela ressaltou que será preciso muita criatividade e boa vontade no uso de instrumentos que já existem para atender a população de baixa renda e lamentou que não seja possível chegar a um bom termo para atender à necessidade de moradia digna para todos.
Política de exclusão e seguro habitacional
Bella lembrou que as famílias desabrigadas pela chuva estão sem perspectivas de serem assentadas a médio ou longo prazos. Para Nego De, militante de moradia popular e morador do Bairro Primeiro de Maio, a questão é urgente. “Não existe benefício para as famílias. Além de serem levadas para lugares isolados, sem acesso às políticas públicas e às vezes, em local insalubre, veem seus imóveis desvalorizados pela Prefeitura, que quer pagar R$ 23 mil em imóveis que valem R$ 50 a R$ 60 mil”, afirmou.
O perfil excludente das políticas de financiamento também foi abordado por Mônica Aguiar, coordenadora do Centro de Referência da Cultura Negra de Venda Nova. Ela destacou a falta de flexibilização do mercado, que cria regras impeditivas para famílias de baixa renda que não têm como arcar com o alto custo da entrada, tampouco com o valor das prestações. Para ela, no arcabouço das propostas feitas pelo poder público deveria estar um plano de habitação capaz de atender a uma faixa de renda mais abrangente.
Diretor de Habitação e Regularização da Urbel, Aderbal de Freitas defendeu o Projeto de Lei 826/2019, que institui o Compra Compartilhada. Ele esclareceu que a subvenção do município está sendo proposta como um adicional ao subsídio do governo federal, mas advertiu que o programa não vai combater o déficit de uma população sem capacidade de assumir um financiamento. “A proposta é reduzir o valor a ser financiado e o valor da parcela para que o beneficiário faça frente ao financiamento. Não é uma política que vai resolver o problema, mas é uma alternativa”, explicou. Segundo ele, a proposta é incluir nessa subvenção um seguro para garantir o pagamento das parcelas em caso de perda de emprego, por exemplo, por até dois períodos de seis meses. “Se não for utilizada, essa verba poderá ser usada como amortização das parcelas”, contou.
Representante do Movimento Nacional de Luta pela Moradia, Edneia Aparecida de Souza concordou com a necessidade de criar um fundo específico para atender quem perdeu renda e não pode continuar pagando as prestações da casa. “É necessário criar um instrumento de seguro habitacional para que a pessoa não perca o imóvel em uma situação de desemprego. É preciso assegurar a proteção da posse do imóvel, pois quem assina o contrato nunca mais terá outra oportunidade.”
O atendimento de famílias que participam de núcleos organizados foi a preocupação de Benedita Dias, presidente do Núcleo dos Sem Casa Santíssima Trindade. Para ela, a proposta de Compra Compartilhada poderá atender famílias dos núcleos de ocupação que têm condições para acessar o programa.
Proposta de autogestão
A representante do Movimento Nacional de Luta pela Moradia lamentou o enfraquecimento de políticas habitacionais que beneficiam a população mais carente e os moradores de aglomerados. Edneia afirmou que o Conselho Municipal de Habitação teria se reunido com o prefeito e apresentado proposta de retomada do modelo de construção denominado de autogestão, desvinculado da política do governo federal. Para isso, segundo ela, seriam usados os terrenos apontados pela PBH Ativos e os recursos da venda do Mercado do Cruzeiro. “Estamos no aguardo de uma resposta desde 2018 para começar a fazer o mutirão, pois não podemos ficar nas mãos do mercado imobiliário”, afirmou, ao denunciar que as construtoras fizeram um banco de terras e que não atendem à faixa 1 do mercado. Edneia destacou ainda que, apesar de ser uma lei regulamentada no município, “ainda não conseguimos implantar o programa Moradia Segura”, se referindo à prioridade para mulheres vítimas de violência doméstica.
Falta de recursos e Moradia Segura
O protagonismo de BH no cenário nacional no que tange à política habitacional foi lembrado pela pesquisadora da UFMG Marina Sanders, que destacou que a inovação não vai sair do papel se não houver recursos públicos. “Como não temos os recursos federais disponíveis, o aporte financeiro do município se torna ainda mais importante. É preciso que o estado se responsabilize pela política de moradia incluindo a população de baixa renda e as pessoas em situação de rua. Hoje temos um valor fixo de 1% da receita municipal destinado a essa questão e esse valor já foi de 5%. Investir em programas de moradia é muito caro e não há como fazê-lo sem recursos”, afirmou. De acordo com Marina, é preciso pensar em investimentos massivos, em programas de reforma de moradias, em diversificar as alternativas de investimento com estruturação de banco de imóveis, investir na produção de autogestão e assegurar o programa Moradia Segura.
Diretora de Planejamento da Urbel, Cristina Magalhães informou que o programa Moradia Segura está sendo acompanhado pela própria Urbel e pela Secretaria Municipal de Assistência Social. “Já existem instrumentos para aplicar o programa (Proas e Bolsa Moradia) e estamos ajustando os critérios de atendimento. Em breve, vamos atender esse público”, afirmou. Quanto às famílias em situação de rua, Aderbal informou que já existe uma proposta de parceria com o governo do estado. “Estamos construindo uma alternativa na qual o estado vai doar um terreno no Horto para construção de um projeto-piloto de uso múltiplo com o objetivo de atender essa população em situação de rua no município”.
Moradia digna
Já Luiz Fernando Vasconcelos, representando as Brigadas Populares, destacou que o número de casas e de lotes vagos em BH é superior ao déficit habitacional na cidade e que “não é possível que as ocupações urbanas consigam construir mais imóveis que o poder público. Como o povo que não tem recursos estruturados consegue construir mais casas que a Urbel?”, questionou. Segundo ele, além de investir na provisão, o poder público deve se atentar também para a regularização fundiária e para a questão humanitária dos assentamentos. “É preciso garantir água e luz para essas comunidades'', declarou ao afirmar que o governo Kalil só se importa com as grandes ocupações - Dandara e Isidora - e que se esqueceu das outras ocupações que, segundo ele, chegam a mais de cem.
A promotora de Justiça de Habitação de e de Urbanismo, Marta Alves, concordou. Para ela, a política habitacional não pode ser desvinculada da política urbana. “O Plano Diretor da cidade, que atende todos os requisitos do Estatuto da Cidade - justiça social, acesso à terra e à moradia digna -, encontra resistência no mercado imobiliário. Já demandamos da Secretaria Municipal de Políticas Urbanas informações sobre os imóveis ociosos na cidade, que não cumprem a função social, e imóveis públicos não utilizados para que possamos dar destinos mais apropriados”. Ela ressaltou que a utilização de terrenos públicos e dos recursos da outorga onerosa aliada à assistência técnica e à autoconstrução pode ser uma alternativa para a construção de moradias para a população de baixa renda. “O problema não é fácil. Precisamos construir em grande escala e isso demanda esforços de toda ordem e a parte do poder público por vir em forma de doação de terra”, afirmou.
Cristina Magalhães, da Urbel, contestou o argumento de Luiz Fernando de que a PBH não dá atenção a todas as ocupações. Segundo ela, todos os assentamentos estão listados como Áreas de Interesse Social (AIS) no município. “A maioria é de loteamentos privados que têm uma demanda de regularização fundiária. Para aqueles que são muito precários, sem acesso à água e luz, a PBH já encaminhou pedido para que as concessionárias providenciem o atendimento”, alegou, informando que apenas no caso de demandas ambientais os pedidos não são liberados.
Função social e políticas públicas
A fiscalização e a notificação de imóveis vazios que não cumprem a função social já previstas em lei também foi o tema da fala da defensora pública Cleide Nepomuceno. Ela afirmaou que já cobrou da Secretaria Municipal de Políticas Urbanas que faça a fiscalização e implemente a lei e que o contexto da pandemia foi citado como um elemento dificultador.
Representando a Secretaria Municipal de Políticas Urbanas, Izabel Dias defendeu as ações da PBH para atender a demanda por moradia na cidade e enfatizou que, embora sejam questões muito ricas e desafiadoras, o valor da terra é a discussão central. “O acesso à terra é estratégico, é uma luta de todos os movimentos e as empresas adquiriram terras mais baratas antes do Programa Minha Casa, Minha Vida. O Plano Diretor foi o primeiro passo. Não foi à toa que demoramos dez anos para aprová-lo, mas ele tem uma perspectiva de médio/longo prazo.”
Segundo Izabel, há um esforço da Urbel para lidar com a situação de crise econômica. Ainda de acordo com ela, os recursos da outorga onerosa não vão mudar a política e o compulsório para ocupação de vazios urbanos é um instrumento de difícil aplicação. “É muito difícil o município assumir um problema tão complexo sem o apoio dos outros entes federados”, afirmou, ao admitir as dificuldades para enfrentar essa que é uma questão estrutural das cidades.
Cristina concordou. “Não é possível uma cidade do tamanho de BH resolver sozinha a questão da habitação. O governo federal tem que aportar recursos e ampliar o investimento na cidade", afirmou a diretora da Urbel. Ela ressaltou que não é certo comparar a produção de moradia do poder público com a produção dos movimentos populares como quer Luiz Fernando, explicando que a produção de moradia por parte do poder público requer uma reestruturação urbana e ambiental para poder ofertar moradias dignas.
Assista ao vídeo da reunião na íntegra.
Superintendência de Comunicação Institucional