Ensino da história e da cultura afro-brasileiras nas escolas precisa avançar
Tema é obrigatório no currículo escolar desde 2003, mas na prática ainda não teria ocorrido. Órgãos diversos foram cobrados
Foto: Cláudio Rabelo/CMBH
Há 20 anos uma lei federal (10.639/2003) assegura inclusão obrigatória do ensino da história e da cultura afro-brasileiras no currículo escolar, mas muito ainda precisa ser feito para que as escolas de Belo Horizonte apliquem de forma plena as diretrizes da legislação. A constatação ocorreu em audiência pública da Comissão de Educação, Ciência, Tecnologia, Cultura, Desporto, Lazer e Turismo, nesta quarta-feira (5/7). Falta de formação para os docentes, ausência de transversalidade nas ações e silêncio de órgãos importantes como Ministério Público e Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), foram desafios apontados pelos participantes - professores, movimentos por uma educação antirracista e gestores municipais. Presente ao debate, o secretário de Educação, Charles Martins Diniz, concordou com a urgência do assunto e assegurou que no âmbito do Município esforços vêm sendo feitos para que a implementação da lei seja uma realidade. Dentre as medidas efetivadas, o gestor disse que já dobrou o número de servidores que tratam do tema na pasta.
Educação antirracista
A Lei 10.639/2003 altera a lei que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional (LDBEN), de 1996, tornando obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileira, e incluindo no calendário escolar o Dia Nacional da Consciência Negra. À norma somam-se outros dispositivos legais, como o que existe, por exemplo, na Lei Orgânica do Município (Artigos 182 e 183) para coibir a prática do racismo e assegurar uma educação antirracista nas escolas de BH. Mas mesmo após 20 anos de promulgação, a efetividade da lei ainda é pauta de debate.
Para a professora municipal e membro do Fórum Permanente de Educação e Diversidade Étnico-Racial de Minas Gerais Rosa Margarida Rocha, "a não consolidação da lei é uma nítida expressão do racismo estrutural e institucional". Rosa Margarida, que também integra o Movimento Sankofa, acredita que o racismo vivenciado hoje precisa ser enfrentado coletivamente, por meio do letramento racial e, para isso, é necessária a construção de uma agenda que tenha metas, prazos e objetivos definidos e sistematizados. "Passados estes 20 anos, precisamos agora é responsabilizar para que todas as instâncias façam sua parte. O que órgãos como Ministério Público e OAB têm feito para efetivação da lei? E os conselhos municipais de educação estão em uma posição de neutralidade? E os sindicatos, os movimentos negros e as universidades? O que tem sido feito nas formações de professores?", questionou a professora, lembrando que sem a capacitação de servidores não é possível avançar.
Formação e abandono escolar
A capacitação também foi apontada como desafio pela professora Wanderléia de Assis, que integra um coletivo de ações anti-racistas. Segundo a educadora, apenas 5% dos municípios brasileiros afirmam ter implementado alguma instância de discussão das questões étnico-raciais e em BH não são claros os investimentos feitos. "Onde está o investimento do poder público na formação docente? Formação é no horário de trabalho. Não podemos jogar essa carga de formação para além do horário de trabalho. Qual o recurso a PBH tem dedicado às questões? Os conselhos têm acompanhado a implementação da lei na rede privada?", questionou.
A educadora ainda lembrou que no Estado de Minas Gerais a situação também é ruim e dados mostram que apenas 2% das escolas trabalham a questão étnico-racial e de gênero e que isso acaba por refletir em uma desmotivação dos alunos no ensino médio, gerando evasão e falta de interesse em buscar uma vaga na universidade. "Apesar da promulgação da lei, as diretrizes curriculares não são estudadas nas escolas. Mas é ali que as questões são tratadas. É lá que estão as nossas bases. E isso (não desenvolver as diretrizes) faz com que se afaste o aluno negro", afirmou.
Transversalidade e apagamento
Abordar nas escolas do país as contribuições dos povos indígenas para a formação do povo brasileiro é objeto de lei (11.645/2008) que também altera a LDBEN, mas, segundo a educadora Avelin Buniacá Kambiwá, os desafios após 15 anos de promulgação da norma são os mesmos vividos pelos povos de matriz africana - desconhecimento, desrespeito e racismo. Representante do Comitê Mineiro de Apoio às Causas Indígenas, Avelin diz que questões básicas como o tratamento correto - indígena e não índio -, ainda são desconhecidas da maioria da população. "Não é possível tratar da questão porque as pessoas não sabem nada dos indígenas. Nos fetichizam e até hoje nos chamam de índio e não indígena. Precisamos que o racismo contra os indígenas seja destruído", ressaltou a professora.
Segundo Avelin, a autodeclaração tem aumentado a possibilidade de preservação dos povos indígenas, mas em especial na escola é preciso que haja transversalidade nas ações. "Não posso falar de temáticas indígenas só no dia 21 de abril. Ela precisa transversalizar todas as disciplinas. Se ela não está hoje (transversalizada) é por desconhecimento dos professores. O próprio povo indígena não pode fazer esse letramento o tempo todo", afirmou, queixando-se ainda do apagamento e deslegitimação sofrida pelo povo indígena.
Eurocentrismo e esvaziamento
Para Diana de Cássia Silva, diretora do Sindicato dos Trabalhadores em Educação da Rede Pública Municipal de BH (Sind-Rede), o desafio é gigante e os gestores da educação em BH estão longe de cumprir o que a legislação determina. Segundo Diana, mesmo com a definição de estado laico, há ainda hoje escolas que rezam a Ave-Maria e o Pai Nosso com os alunos antes das aulas, mesmo que tenham dezenas de alunos de religiões de matriz africana, mantendo assim um padrão eurocentrista na educação. "A história e a memória são importantes para a autoestima de um povo e tivemos uma colonização que apagou nossa história para nos dizer que nossos lugares eram na limpeza e na cozinha. A escola é um lugar de ensino laico, que ensina todas as religiões", argumentou.
Ainda segundo a dirigente, outra preocupação é o esvaziamento da função do professor e a ausência de diálogo da Smed com as escolas, que não acontece nem mesmo para se debater a compra de um material didático. "As escolas precisam ter projetos que tratem as questões étnico-raciais, mas vem tudo pronto da Smed. Foram gastos R$ 27 milhões com esse material pedagógico que está aí (mostrou imagens de apostilas) e em nenhum momento foi discutido com os professores. Esse material fala de 'indiazinha' e apresenta apenas pessoas brancas. É isso que se usa para o letramento da educação básica. Vamos fazer uma marcha e pedir para retirar esse material", afirmou.
Compra de apostilas
Segundo Iza Lourença (Psol), que junto de Cida Falabella (Psol) assina a pedido para o debate, a questão das apostilas é grave e informações foram solicitadas à Smed, que se pronunciou, por meio de ofício, dizendo que não há na Lei 10.639/2003 a obrigatoriedade de que todo o material aborde a questão. "Isso nos deixou chocado. Não pode ser que a gente limite as questões étnico-raciais ao desfile de moda ou a programação do 'dia do índio'. É preciso que a abordagem seja transversalizada em todo o material. Faremos uma indicação para retirada desse material", afirmou passando à palavra ao secretário de Educação, Charles Diniz.
Pedindo desculpas pelo ofício de resposta, o secretário concordou que há necessidade de maior transversalidade das ações. Argumentou que herdou uma estrutura muito ruim, mas que já definiu por dobrar o número de pessoas que atuam na Gerência de Relações Étnico-Raciais (Geret). "Falei com a Mara (gerente) que se ela conseguir pode trazer mais dez (pessoas) da rede. Esse é um tema urgente, que não pode ser deixado para depois e que precisa ser tratado na porta da escola", afirmou.
Ainda segundo Charles Diniz, todas as regionais da PBH passarão a contar com uma assessoria para tratar as questões étnico-raciais e, sobre o material didático, disse que ele está comprado, pago, que não pode falar muito, porque não tem relação com sua gestão, mas que nova compra será feita para complementar. "E para isso não acontecer mais está publicada uma portaria que determina que todo o material que chegue passe por uma comissão. Então tem um filtro agora", ressaltou.
39 nacionalidades
Também presente, Mara Catarina Evaristo, gerente das Relações Étnico-Raciais (Geret), lembrou que os desafios têm sido imensos e que grande é a responsabilidade do Município no trato com as questões étnico-raciais, já que só de diferentes nacionalidades a rede municipal de educação já acolhe alunos oriundos de 39 países. "Se olhamos de onde saímos, vejo que caminhamos muito, mas se olho para onde queremos chegar, vejo que ainda falta muito", refletiu.
Segundo Mara Evaristo, a partir de 2012 houve um fortalecimento da agenda de formação por meio de núcleos de estudo nas regionais e hoje são cerca de 500 profissionais em atuação. A gerente lembrou que mais de 53% da população de BH se autodeclara negra e que além de povos tradicionais, indígenas e diversas outras comunidades, como os quilombolas, estão dentro das escolas. "Nas unidades, mesmo com muitas dificuldades, podemos dizer que em todas há pessoas envolvidas com a temática. Não estamos à frente, numa posição confortável, mas temos mobilização para que a lei se consolide", avaliou.
Encaminhamentos
Antes de encerrar, Iza Lourença disse que foram inúmeros os apontamentos feitos e que todos os encaminhamentos serão sistematizados, disponibilizados e lembrou que o compromisso com a educação antirracista é dever de todos. "Já demos muitos passos, mas estamos mesmo longe de onde queremos estar; já que temos apostilas racistas sendo utilizadas. Essa é uma pauta da sociedade e precisa ser encarada por todos e todas. Então 'bora' para uma educação antirracista", finalizou.
Assista à íntegra da reunião.
Superintendência de Comunicação Institucional