Uma cidade para todos: Belo Horizonte no caminho da inclusão
Com políticas públicas, pessoas com deficiência começaram a sair de casa e usufruir dos espaços comuns, dando um novo desenho para a cidade
Foto: Karoline Barreto/CMBH
No ano em que completa 125 anos, a cidade pensada para ser a capital do estado reflete o desafio de seu crescimento para além da Avenida do Contorno, mas também, o de garantir às pessoas com deficiência que vivem em seus limites o direito de ir e vir, a participação na vida da cidade, o acesso e a inclusão aos espaços públicos. E a missão não é simples. Dados divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que pelo menos 45 milhões de brasileiros têm algum tipo de deficiência, o que representa cerca de 24% da população do país.
Ao mesmo tempo, a taxa de participação deles no mercado de trabalho era, em 2019, de apenas 28,3%; menos da metade do percentual que as pessoas sem deficiência (66,3%). No rendimento entre os trabalhadores também há um fosso, já que as pessoas com deficiência tinham, no mesmo período, um rendimento médio mensal de R$ 1.639, enquanto os ocupados sem deficiência recebiam, em média, R$ 2.619/mês. A possibilidade de alcançar uma vaga no mercado formal de trabalho está diretamente ligada às condições de segurança, independência e locomoção destas pessoas pelas ruas, calçadas, praças, comércios e transporte público na cidade.
Convergência dos movimentos
As duas primeiras normas sobre o tema na cidade datam das década de 1960 e 1970 e se ocupam exatamente de apontar alternativas para questões ligadas à mobilidade e o emprego. Em julho de 1964, a Lei 1.116 estabeleceu a gratuidade à pessoas cegas em linhas de ônibus elétricos da capital; seis anos depois, a Lei 1.965/1971, de autoria do então vereador Jorge Carone, determinou que poderão ser admitidos na Administração Pública Municipal em cargos, funções ou empregos pessoas surdas ou surdas-mudas. Nos anos seguintes, a quantidade de normas sobre o tema passou por forte ampliação: na década de 1980 foram 12 leis sancionadas; na de 1990 foram 18 e entre os anos de 2000 a 2022, 62 leis passaram a vigorar. Dentre estes textos, estão proposições como a Lei 3.758/1984, que obriga o Município a incluir nos editais de concorrências e licitações públicas cláusula estipulando a construção de equipamentos que facilitem o acesso de pessoas com dificuldade de locomoção em áreas destinadas à escolas, hospitais, postos de saúde, centros administrativos, de lazer e cultura de sua propriedade. Também merece destaque a Lei 6.590/1994, que trata da implantação do ensino especial nas escolas municipais, e a Lei 9.078/2005, que estabelece a Política da Pessoa com Deficiência para Belo Horizonte.
Para o consultor Legislativo em Ciências Sociais e Políticas da CMBH, Otávio Debien Andrade, o que se pode extrair da análise histórica dessas leis é uma tendência gradual de convergência do movimento de pessoas com deficiência. Segundo Debien, em meados do século passado, esse movimento não era unificado, e cada grupo buscava por conta própria conquistar alguma alteração legislativa, tendo em vista suas necessidades e demandas. "Com o tempo, observa-se o fortalecimento do movimento das pessoas com deficiência, com uma convergência dos diferentes grupos, que encontraram força na luta comum por seus direitos, não só nas demandas que lhes são semelhantes, mas também na defesa do atendimento às demandas de cada seguimento. A partir dos anos 2000, esse movimento consegue ganhar maior projeção e vai aos poucos conquistando espaço na agenda política, embora tenha, ainda hoje, dificuldades em verem atendidas e, sobretudo, implementadas, muitas de suas pautas", afirmou.
Inclusão = autonomia e cidadania
Uma grande mudança, segundo Otávio Debien, que esse movimento consegue lentamente promover é a difusão da ideia de inclusão, o tem seu auge em 2015, com a aprovação da Lei Federal de Inclusão da Pessoa com Deficiência / Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei 13.146/2015). "Ao invés de serem vistas como pessoas que precisam viver de alguma maneira apartadas, elas conquistam o direito de serem incluídas em todas as esferas. E disso deriva a ideia de acesso universal a todos os espaços; de inclusão no ambiente escolar regular, junto com os demais estudantes; de inclusão no mercado de trabalho, com garantias de isonomia", observa.
A difusão e a concretização desse conceito na capital mineira deram um passo importante com a aprovação da Lei Municipal de Inclusão da Pessoa com Deficiência e da Pessoa com Mobilidade Reduzida (Lei 11.416), em 2022. O texto consolidou a legislação municipal existente, incorporando o conteúdo de 66 leis municipais anteriormente em vigor. Apresentada em 2017, a proposta, que tem mais de 150 artigos, foi amplamente debatida com diversos setores da sociedade civil, dentre eles o Conselho Municipal da Pessoa com Deficiência e a Comissão de Defesa dos Direitos da Pessoa com Deficiência da Ordem dos Advogados do Brasil - Seção Minas Gerais (OAB/MG). A Lei Municipal de Inclusão dispõe sobre o atendimento prioritário; a igualdade no exercício de direitos como participação política, saúde e educação; acessibilidade no espaço público, nas edificações, no transporte e nas comunicações; e aponta ainda deveres da Administração Pública Municipal na garantia dos direitos da pessoa com deficiência.
Para Irlan Melo (Patri), autor da proposta e presidente da Comissão de Legislação e Justiça, embora os esforços venham se somando, BH, assim como outras grandes capitais do país, ainda não é uma cidade inclusiva e acessível. "A Lei de Inclusão é o maior trabalho dos últimos 20 anos da Câmara Municipal nesse segmento; foi construída por muitas vozes, em vários seminários realizados", afirmou. A nova legislação deve beneficiar 188.800 mil pessoas que vivem em BH com algum tipo de deficiência, 4,5% da população, segundo pesquisa realizada pela Vox Populi e encomendada pelo Instituto Mano Daw em 2020.
Além da apresentação de proposições, o Legislativo Municipal também tem atuado na fiscalização das ações do Executivo e, em especial, nestes últimos anos, realizando diversas visitas técnicas para verificar a acessibilidade dos espaços, já que a garantia de autonomia na locomoção segura da pessoa com deficiência é uma das premissas da nova lei. "Visitamos vários empreendimentos que passavam pelo Compur, o Conselho Municipal de Políticas Públicas, dentre eles a Catedral Cristo Rei, o Mineirão, o Independência e a Arena do Galo, para que estes locais se tornassem acessíveis. É impensável você ter uma arena multiuso, um equipamento de primeira geração, que não seja acessível. A busca não é simplesmente pela inclusão, é para que se tenha a autonomia da pessoa com deficiência”, assegurou Irlan Melo.
Convívio restrito x sujeito de direitos
E se BH ainda não atingiu um modelo ideal de acessibilidade e inclusão para todos os seus cidadãos, quem viu a cidade há 40, 50 anos, garante que avanços foram conquistados. Fundador da União dos Paraplégicos de Belo Horizonte (Unipabe) há 44 anos, o vereador Walter Tosta (PP), que é cadeirante, lembra que naquela época a pessoa com deficiência vivia à margem da sociedade, muitas vezes segregada em hospitais, institucionalizada ou restrita à convivência familiar, não sendo reconhecida como sujeito de direitos, dotado de capacidades e habilidades. “Não havia políticas públicas específicas. Não tínhamos direito à acessibilidade no transporte público, era tudo muito precário. Rebaixamento de calçadas, nem pensar! Não nos era assegurado o direito à educação, lazer, saúde, inclusão e trabalho. Inclusão, cidadania e autonomia eram palavras que não combinavam com a deficiência”, lembra Tosta.
Para o parlamentar, que presidiu a Comissão de Direitos Humanos, Igualdade Racial e Defesa do Consumidor em 2021, as mudanças trazidas pela implementação das políticas públicas alteraram também a percepção e o comportamento da cidade e dos cidadãos em relação à pessoa com deficiência. Para assegurar o direito de ir e vir em BH, a frota de ônibus se adaptou, instalando plataforma elevatória e, além disso, são exigidas rampas de acessibilidade, piso tátil nas calçadas, sinal sonoro para os surdos e demarcação de vagas de estacionamento exclusivo. Segundo Walter Tosta, a partir dessas mudanças, as pessoas com deficiência começaram a sair de casa e usufruir dos espaços comuns, dando um novo desenho para a cidade. “Elas romperam a barreira da invisibilidade, quebraram paradigmas e começaram a fazer parte do cenário urbano, o que impactou no comportamento das pessoas sem deficiência, tornando-as mais empáticas, solícitas, pacientes, reconhecendo e respeitando o direito da pessoa com deficiência”, afirmou.
Representatividade e protagonismo
E se as mudanças para tornarem as cidades mais inclusivas e acessíveis podem ser potencializadas com a participação ativa da pessoa com deficiência ocupando espaços de decisão e protagonismo, nosso país tem pela frente um longo caminho a percorrer. Durante as eleições deste ano, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) registrou a candidatura de 475 pessoas com deficiência para concorrer a um cargo público nas casas legislativas do país. O número representa apenas 1,6% do total de 28.644 pedidos de registros de candidatura. Em contrapartida, dados do IBGE mostram que pelo menos 45 milhões de brasileiros têm algum tipo de deficiência, o que representa cerca de 24% da população do país.
Na atual legislatura (2021/2024), a Câmara de BH conta apenas com um vereador cadeirante. A representatividade política de pessoas com deficiência na Casa já foi maior; em 2016, eram vereadores Arnaldo Godoy, que é cego, e Leonardo Mattos, cadeirante. Ainda assim, naquele ano, uma reforma do plenário principal, o Amynthas de Barros, retirou o desenho universal do espaço, implantando escadarias no acesso à mesa. O projeto arquitetônico original da reforma de 2016 tinha previsão de acessibilidade e chegou a ser registrado no Conselho de Arquitetura e Urbanismo da cidade, mas o presidente à época, Wellington Magalhães, ordenou que não fosse instalada plataforma de acesso durante a execução da obra. Em 2022, nova reforma devolveu acessibilidade ao local.
Para Walter Tosta, a recuperação do antigo traçado foi uma conquista para a Casa, que hoje cumpre o conceito previsto na Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência. Também Irlan Melo considera importante o retorno do desenho anterior, porém, acredita que outros passos precisam ser dados. “Ainda temos dificuldades. Não temos um intérprete de Libras que participe de todas as reuniões que acontecem. Não apenas do Plenário, mas das comissões e de tudo o que é feito”, ponderou. Segundo a Superintendência de Comunicação Institucional da CMBH, a contratação do serviço de intérprete da Língua Brasileira de Sinais (Libras) está prevista para 2023.
Novas leis e ampliação da fiscalização
Embora a representatividade tenha sido maior em outros períodos, nos últimos anos a Câmara Municipal de Belo Horizonte tem pautado o tema, e projetos importantes se tornaram leis na cidade, contribuindo para uma cultura de inclusão, autonomia e garantia de direitos para a pessoa com deficiência.
Só neste ano, a Casa produziu as Leis 11.359, de autoria de Professora Marli (PP), que institui diretrizes para a criação de escolas bilíngues em Libras e língua portuguesa na rede municipal de educação; e 11.356, assinada por Nely Aquino (Pode), Flávia Borja (PP), Professora Marli e Marcos Crispim (PP), que institui a Semana Municipal de Conscientização do Uso do Cordão de Girassol - utilizado para identificar pessoa que tenha deficiência oculta ou doença rara.
Em 2021, foram sancionadas a Lei 11.302, de Jorge Santos (Republicanos), que institui a noção dos direitos dos idosos e dos direitos das pessoas com deficiência como temas a serem abordados no contraturno das escolas de educação integral, e a Lei 11.297, proposta por Reinaldo Gomes Preto Sacolão (MDB), que estabelece normas para garantir a acessibilidade de deficientes auditivos à exibição de filmes nacionais e estrangeiros, animações, espetáculos e peças teatrais em salas de cinema e de teatro da cidade.
Em 2020, com a pandemia de covid-19, a cidade conquistou outras duas leis para o segmento. A Lei 11.248, de Marilda Portela (Cidadania), autoriza a implantação do Programa Municipal de Oportunidade e Inclusão para Jovem Aprendiz, Pessoa com Deficiência ou Reabilitado Aprendiz. Já a Lei 11.232, do então vereador Elvis Côrtes, trata da reserva de assentos preferenciais nos terminais, estações e salas de espera que integram o sistema de transporte de passageiros em todas as modalidades.
Superintendência de Comunicação Institucional