Possível descontinuidade do projeto Canto da Rua preocupa entidades e usuários
Projeto oferece atendimento emergencial à população em situação de rua, que dobrou nos últimos dois anos; demanda é por moradia e trabalho
Foto: Ernandes Ferreira/ CMBH
Saúde, dignidade, trabalho e, principalmente, moradia estão entre as demandas centrais para efetivo atendimento à população em situação de rua. Conforme lembraram os participantes da audiência pública, promovida na última quinta-feira (26/8), pela Comissão de Desenvolvimento Econômico, Transporte e Sistema Viário, a moradia é essencial para a reestruturação da vida, a autonomia e a inclusão social. O debate foi realizado por iniciativa do Grupo de Trabalho (GT) BH sem Morador de Rua, criado no âmbito da Comissão, que vem colhendo dados e experiências para subsidiar a análise e busca de soluções para o tema. A curto prazo, a maior preocupação do segmento é o iminente fechamento do projeto Canto da Rua Emergencial, criado em junho de 2020, que atende 800 pessoas por dia na Serraria Souza Pinto. Idealizado e gerido pela Pastoral de Rua, em parceria com a Defensoria Pública, o projeto oferece água, lanche, banho, lavanderia, assessoria jurídica e hospedagem para os mais vulneráveis, entre outros serviços. Diante da proximidade da data determinada para a desocupação (31 de agosto), o relator do GT, vereador Braulio Lara (Novo), vai pedir uma reunião com a pasta de Assistência Social na Prefeitura e cobrar a continuidade do atendimento. Acesse aqui a pauta completa da reunião, que discutiu flexibilização para comércio no Buritis e horários reduzidos dos ônibus.
A audiência desta quinta, com gestores, apoiadores e beneficiários de ações e programas sociais voltados à população de rua, foi requerida por Braulio Lara (Novo), presidente da Comissão e relator do GT BH sem Morador de Rua. Após as apresentações, o parlamentar passou a palavra ao representante do Movimento Nacional da População de Rua, Samuel Rodrigues, que conhece de perto as dificuldades vividas por quem não tem onde morar. O ativista reconheceu a boa intenção do GT, mas criticou o nome escolhido; para ele, o termo “sem” remete à exclusão e deveria ser substituído por “com”, mais propositivo e inclusivo: “BH com moradia para todos”, BH com saúde para todos”, “BH com esporte e lazer para todos”, sugeriu.
Rodrigues apontou que a rede assistencial do município não atende a demanda: os abrigos da Prefeitura ofereceriam menos de duas mil vagas para um público de quase 9 mil pessoas e o Consultório de Rua teria quatro equipes para atender a cidade inteira. A heterogeneidade dessa população, que tem em comum a pobreza extrema e a dificuldade de acesso a água, serviços básicos, emprego e moradia, foi destacada pelo convidado. Para além das ações assistenciais, as pessoas querem um endereço, qualificação profissional e emprego. Trabalhando no Canto da Rua Emergencial desde o início, ele lamentou o fechamento do espaço e a angústia dos usuários, que temem a perda da assistência emergencial.
Direitos básicos
Ameaçado de fechar na próxima terça-feira (31/8), o Canto da Rua Emergencial recebeu visita técnica do GT, na última segunda-feira (23/8), que conferiu de perto a estrutura física, humana e os serviços prestados, que garantem direitos básicos como água potável, alimentação, higiene pessoal e hospedagem para idosos e pessoas com comorbidades. Claudenice Lopes, da Pastoral de Rua, que integra a equipe, expôs um breve histórico do Canto da Rua, que sobrevive com recursos de doações. Também listou os serviços mais procurados, a evolução dos atendimentos, que triplicaram desde a abertura do espaço, experiências e aprendizados adquiridos, demandas e propostas do projeto. Em 14 meses de funcionamento, o número médio de pessoas atendidas passou de 250 para 800 pessoas por dia; além dos serviços emergenciais, o projeto hospeda e acompanha pessoas em situação de risco e identifica e promove iniciativas de geração de trabalho e renda.
Emprego e moradia
O coordenador do Programa Polos de Cidadania da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), professor André Luiz Freitas Dias, e a defensora pública Especializada de Direitos Humanos, Júnia Carvalho, também criticaram a incongruência dos dados sobre essa população, perfil, origem e situação atual e a desatualização do CadÚnico, que prejudicam o planejamento das ações. Para eles, a omissão da Prefeitura faz com que oito em cada dez pessoas em situação de extrema vulnerabilidade não tenham acesso ao Auxílio emergencial, Bolsa-família, Bolsa-aluguel e outros programas sociais. Segundo André Dias, muitos outros países lidam com essa questão, agravada pela pandemia. A promoção do acesso a água e instalações sanitárias pelo Poder Público também foi recomendada pelos participantes.
Júnia Carvalho e a psicóloga Marta Elizabeth, do Fórum Mineiro de Saúde Mental, reforçaram as denúncias de violência institucional contra a população em situação de rua, revistada e humilhada com frequência por agentes públicos, e privada de seus poucos pertences, cujo recolhimento é vedado por lei. Foi defendida a criação de políticas mais eficientes e acolhedoras que abrigos e internações - que, para elas, desumanizam e criminalizam - e programas de geração de renda. A maioria dos moradores de rua, segundo elas, tem um grande potencial de trabalho, habilidades e talentos não aproveitados. O essencial, porém, é a moradia, que traz cidadania, acesso a serviços e maiores chances de conseguir emprego. A autonomia e autoestima recuperadas também facilitam o restabelecimento de laços familiares.
A defensora propõe a implantação de um projeto de moradia semelhante ao Housing First, dos Estados Unidos, também adotado em países europeus, que cede imóveis públicos espalhados pela cidade (fugindo da lógica de gueto), para residência temporária ou definitiva, e disponibiliza equipes para acompanhar as famílias em sua nova vida. Bernardo Souza, da organização Casa de Acolhimento Transitório, apresentou um projeto desenvolvido pelo grupo que utiliza contêiners para moradia e atividades de desenvolvimento pessoal e geração de riqueza.
Reunião com Secretária
Após ouvir os participantes, Braulio Lara anunciou que vai solicitar uma reunião com a Secretária Municipal de Assistência Social, Segurança Alimentar e Cidadania (Smasac), Maíra Colares, para obter informações sobre serviços emergenciais e cobrar a continuidade do trabalho do Canto da Rua. Samuel Rodrigues, do Movimento Nacional da População de Rua, salientou que as demandas não se restringem a ações assistenciais e de saúde. Ele alertou que a superação da situação de rua e a reconstrução de laços familiares e sociais passam por capacitação profissional e acesso a emprego, cultura, esporte e lazer, e propôs que o GT dialogue com esses setores. Os projetos de moradia e outras sugestões serão analisadas.
Eixos de trabalho
As análises e proposições do GT BH sem Morador de Rua abrangem quatro eixos: atendimento e encaminhamento social; revitalização de centralidades e bairros degradados; fomento do turismo em regiões específicas; e reinserção no mercado de trabalho. A pedido do relator, a consultoria da Casa compilou dados da Secretaria de Assistência Social (Smasac), atualizados em junho, que registram 8.374 pessoas em situação de rua cadastradas pela PBH, sendo 89% do sexo masculino e 83% negros e pardos; no que tange aos vínculos familiares, 67% não têm contato com a família “nunca ou quase nunca” e 80% recebem bolsa-família ou renda similar.
Assista ao vídeo da reunião na íntegra.
Superintendência de Comunicação Institucional